segunda-feira, 14 de junho de 2010

Inexplicável?

Circulam várias hipóteses sobre a razão da operação militar israelense que causou a morte de 9 a 16 passageiros do barco de bandeira turca Mavi Marmara, dezenas de feridos, e o seqüestro da frota que transportava 10 toneladas de ajuda humanitária para Gaza – sob bloqueio desde 2007 e invadida em 2008 -, além da detenção de quase 700 pessoas, postas em liberdade após sofrer vexames de todo tipo. As explicações oficiais de Tel Aviv são inquilinas do ridículo: os agredidos são agressores e os agressores, agredidos; os levados à força para Israel são imigrantes ilegais, aqueles que socorrem palestinos com fome são cúmplices do Hamas primeiro, terroristas do Hamas depois, etc. É velha, muito velha, a tática de vitimização do carrasco.

O primeiro ministro Netanyahu justificou o ataque dizendo que é preciso evitar que o Hamas receba armas por “ar, terra e mar” – desviando-se do fato de que o Hamas recebe essas armas por túneis - e que nenhum protesto o levará a levantar o bloqueio contra Gaza. Essa é a questão de fundo: Tel Aviv não renunciou ao sonho da Grande Israel e o cerco imposto a Gaza prejudica, mais do que ao Hamas, a seus habitantes, que já sofreram a Operação Chumbo Derretido que tirou a vida de 1.300 civis palestinos. Isto, falando claramente, chama-se limpeza étnica e sua história também é velha.

O ideólogo do movimento de direita denominado Sionismo revisionista, Zeev Jabotinsky, declarou há 87 anos que a única maneira de impor o Estado judeu era esmagando os árabes. Não é de se estranhar, portanto, que Ron Torossian, organizador da manifestação “Estamos com Israel”, realizada em frente à missão da Turquia na ONU, repetisse essa opinião: “Creio que devemos matar cem ou mil árabes por cada judeu que eles matam”. Por que não 100 mil ou 1 milhão? Por acaso Ariel Sharon não foi responsável, em 1982, pela ação de uma milícia que resultou na matança de quase 500 civis palestinos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila? Se isso é ideologia será preciso mudar a definição da palavra “ideologia”.

O governo israelense parece guiado por outro conceito central de Jabotinsky: “Sustentamos que o sionismo é moral e justo. E dado que é moral e justo, é preciso fazer justiça ainda que José ou Simão, ou Ivan ou Ajmed, não estejam de acordo”, afirmou em um ensaio publicado na revista russa Raavyet, em novembro de 1923. Carlo Strenger, professor da Universidade de Tel Aviv, chamou de “mentalidade de bunker” aquela imperante hoje no país: Israel “não escuta a crítica, seja interna ou externa. Essa incompetência é reforçada pela soberba: Israel está apaixonado pela idéia de que tem razão e que todos os demais estão errados; portanto, é incapaz de admitir que a política que aplica aos palestinos foi desastrosa”. Strenger cita o filósofo francês Bernard- Henry Lévy, um fervoroso defensor de Israel, que chamou de “autismo político” este pensamento que atribui aos dirigentes israelenses: “O mundo não nos entende e nos condena se fazemos algo e nos condena se não fazemos. De modo que fazemos o que queremos”. Jabotinsky redivivo.

Os EUA sempre forneceram o espaço internacional necessário para que essa vontade se cumpra acima de qualquer coisa. “A única democracia na região”, segundo a Casa Branca, não vacila em espionar o governo estadunidense neste contexto de “fazer o que bem entender”. A reação de Obama frente ao ataque ao navio turbo e ao banho de sangue que se seguiu foi débil. Sequer condenou o ataque, pedindo apenas um esclarecimento dos fatos e aceitando que Tel Aviv rechaçasse a instalação de uma comissão investigadora internacional. O presidente norte-americano se converte assim em cúmplice da não- investigação que será feita. O presidente Joe Biden divulgou uma espécie de posição oficial sobre o tema: defendeu o bloqueio de Gaza e disse que Israel “tinha o direito a saber” qual era a carga do navio. Cabe lembrar que Netanyahu deu uma bofetada política em Biden quando este visitou-o em março passado: o vice foi visitá-lo para impulsionar o processo de paz com os palestinos e o primeiro-ministro anunciou a construção de 1.600 edifícios novos em território palestino ocupado. Vê-se que Biden é um homem que sabe perdoar. É improvável que se produzam mudanças na estreita e muito íntima relação EUA-Israel.

Cabe reconhecer que, ao contrário de Tel Aviv, Washington não tem problema em abandonar seus cidadãos em apuros, Cerca de 10 estadunidenses viajavam no comboio de ajuda humanitária a Gaza, entre eles, Joe Meadors, marinheiro da fragata USS Liberty, bombardeada por aviões e lanchas lança-torpedos de Israel em 1967; Ann Wright, coronel do Exército dos EUA, Edward L. Peck, ex-subdiretor do grupo de tarefas antiterroristas do gabinete de Reagan. Todos terroristas, naturalmente.

(*) Poeta, escritor, tradutor e jornalista argentino, vencedor do Prêmio Cervantes 2007 e do Prêmio de Literatura Latino-Americana e das Caraíbas Juan Rulfo, entre outros.

Tradução: Katarina Peixoto

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sábado, 17 de abril de 2010

Chomsky: o que está em jogo na questão do Irã.

Em entrevista à publicação alemã Freitag, Noam Chomsky fala da pressão dos EUA e de Israel sobre o Irã e seu significado geopolítico. "O Irã é percebido como uma ameaça porque não obedeceu às ordens dos Estados Unidos. Militarmente essa ameaça é irrelevante. Esse país não se comportou agressivamente fora de suas fronteiras durante séculos. Israel invadiu o Líbano, com o beneplácito e a ajuda dos EUA, até cinco vezes em trinta anos. O Irã não fez nada parecido", afirma.

David Goessmann/Fabian Scheidler - Freitag

Barak Obama obteve em 2009 o Prêmio Nobel da Paz enquanto enviava mais tropas ao Afeganistão. O que ocorreu com a “mudança” prometida?

Chomsky: Sou dos poucos que não está desiludido com Obama porque não depositei expectativas nele. Eu escrevi sobre as posições de Obama e suas perspectivas de êxito antes do início de sua campanha eleitoral. Vi sua página na internet e para mim estava claro que se tratava de um democrata moderado ao estilo de Bill Clinton. Há, claro, muita retórica sobre a esperança e a mudança. Mas isso é como uma folha em branco, onde se pode escrever qualquer coisa. Aqueles que se desesperaram com os últimos golpes da era Bush buscaram esperanças. Mas não existe nenhuma base para expectativa alguma uma vez que se analise corretamente a substância do discurso de Obama.Seu governo tratou o Irã como uma ameaça em função de seu programa de enriquecimento de urânio, enquanto países que possuem armas nucleares como Índia, Paquistão e Israel não sofrem a mesma pressão.
Como avalia essa maneira de proceder?
Chomsky: O Irã é percebido como uma ameaça porque não obedeceu às ordens dos Estados Unidos. Militarmente essa ameaça é irrelevante. Esse país não se comportou agressivamente fora de suas fronteiras durante séculos. O único ato agressivo se deu nos anos 70 sob o governo do Xá, quando, com apoio dos EUA, invadiu duas ilhas árabes. Naturalmente ninguém quer que o Irã ou qualquer outro país disponha de armas nucleares. Sabe-se que esse Estado é governado hoje por um regime abominável. Mas apliquem-se os mesmos rótulos aplicados ao Irã a sócios dos EUA como Arábia Saudita ou Egito e só se poderá o Irã em matéria de direitos humanos. Israel invadiu o Líbano, com o beneplácito e a ajuda dos EUA, até cinco vezes em trinta anos.
O Irã não fez nada parecido.Apesar disso, o país é considerado como uma ameaça...
Chomsky: Porque o Irã seguiu um caminho independente e não se subordina a nenhuma ordem das autoridades internacionais. Comportou-se de modo similar ao que fez o Chile nos anos setenta. Quando este país passou a ser governador pelo socialista Salvador Allende foi desestabilizado pelos EUA para produzir “estabilidade”. Não se tratava de nenhuma contradição. Era preciso derrubar o governo de Allende – a força “desestabilizadora” – para manter a “estabilidade” e poder restaurar a autoridade dos EUA. O mesmo fenômeno ocorre agora na região do Golfo. Teerã se opõe à autoridade dos EUA.
Como avalia o objetivo da comunidade internacional ao impor graves sanções a Teerã?
Chomsky: A comunidade internacional: curiosa expressão. A maioria dos países do mundo pertence ao bloco não alinhado e apóiam energicamente o direito do Irã de enriquecer urânio para fins pacíficos. Tem repetido com freqüência e abertamente que não se consideram parte da denominada “comunidade internacional”. Obviamente pertencem a ela só aqueles países que seguem as ordens dos EUA. São os EUA e Israel que ameaçam o Irã. E essa ameaça deve ser tomada seriamente.
Por que razões?
Chomsky: Israel dispõe neste momento de centenas de armas atômicas e sistemas de lançamento. Destes últimos, os mais perigosos provem da Alemanha. Este país fornece submarinos nucleares Dolphin, que são praticamente invisíveis. Podem ser equipados com mísseis nucleares e Israel está preparado para deslocar esses submarinos para o Golfo. Graças à ditadura egípcia, os submarinos israelenses podem passar pelo Canal de Suez.Não sei se isso foi noticiado na Alemanha, mas há aproximadamente duas semanas a Marinha dos EUA informou que construiu uma base para armas nucleares na ilha Diego Garcia, no oceano Índico. Ali seriam estacionados os submarinos equipados com mísseis nucleares, inclusive o chamado “destruidor de bunkers”. Trata-se de projéteis que podem atravessar muros de cimento de vários metros de espessura. Foram pensados exclusivamente para uma intervenção no Irã. O destacado historiador militar israelense Martin Levi van Creveld, um homem claramente conservador, escreveu em 2003, imediatamente após a invasão do Iraque, que “depois desta invasão os iranianos ficaram loucos por ainda não terem desenvolvido nenhuma arma atômica”. Em termos práticos: há alguma outra maneira de impedir uma invasão? Por que os EUA ainda não ocuparam a Coréia do Norte? Porque ali há um instrumento de dissuasão. Repito: ninguém quer que o Irã tenha armas nucleares, mas a probabilidade de que o Irã empregue armas nucleares é mínima. Isso pode ser comprovado nas análises dos serviços secretos estadunidenses. Se Teerã quisesse equipar-se com uma só ogiva nuclear, provavelmente o país seria arrasado. Uma fatalidade deste tipo não é do gosto dos clérigos islâmicos no governo: até agora eles não mostraram nenhum impulso suicida.
O que pode fazer a União Européia para dissipar a tensão desta situação tão explosiva?
Chomsky: Poderia reduzir o perigo de guerra. A União Européia poderia exercer pressão sobre Índia, Paquistão e Israel, os mais proeminentes não assinantes do Tratado de Não Proliferação Nuclear, para que finalmente o assinem. Em outubro de 2009, quando se protestou contra o programa atômico iraniano, a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) aprovou uma resolução, que Israel desafiou, para que este país assinasse o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e permitisse o acesso de inspetores internacionais aos seus sistemas nucleares. A Europa e os EUA trataram de bloquear essa resolução. Obama fez Israel saber imediatamente que não devia prestar nenhuma atenção a esta resolução. É interessante o que acontece na Europa desde que a Guerra Fria acabou. Quem acreditou na propaganda das décadas anteriores devia esperar que a OTAN se dissolvesse em 1990. Afinal, a organização foi criada para proteger a Europa das “hordas russas”. Agora já não existem “hordas russas”, mas a organização se expande e viola todas as promessas que fez a Gorbachev, que foi suficientemente ingênuo para acreditar no que disseram o presidente Bush e o chanceler Kohl, a saber: que a OTAN não se deslocaria um centímetro na direção do leste europeu. Na avaliação dos analistas internacionais, Gorbachev acreditou em tudo o que eles disseram. Não foi muito sábio. Hoje a OTAN expandiu a grandes territórios do Leste e segue sua estratégia de controlar o sistema mundial de energia, os oleodutos, gasodutos e rotas de comércio. Hoje é uma mostra do poder de intervenção dos EUA no mundo. Por que a Europa aceita isso? Por que não se coloca de pé e olha de frente para os EUA? Ainda que os EUA pretendam seguir sendo uma superpotência militar, a sua economia praticamente desmoronou em 2008.
Faltaram bilhões de dólares para salvar Wall Street. Sem o dinheiro da China, os EUA talvez tivessem entrada em bancarrota.
Chomsky: Fala-se muito do dinheiro chinês e especula-se muito a partir deste fato sobre um deslocamento do poder no mundo. A China poderia superar os EUA? Considero essa pergunta uma expressão de extremismo ideológico. Os Estados não são os únicos atores no cenário mundial. Até certo ponto são importantes, mas não de modo absoluto. Os atores, que dominam seus respectivos Estados, são sobretudo econômicos: os bancos e as corporações. Se examinamos quem controla o mundo e determina a política, vamos nos abster de afirmar um deslocamento do poder mundial e da força de trabalho mundial. A China é o exemplo extremo. Ali se dão interações entre empresas transnacionais, instituições financeiras e o Estado na medida em que isso serve a seus interesses. Esse é o único deslocamento de poder, mas não proporciona nenhuma manchete.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Quanto custa um pôr de sol?

As relações humanas se transformaram em transações comerciais e tudo, tudo mesmo, do sexo à Santísssima Trindade, vira mercadoria e chance de lucro


Leonardo Boff


Um grande empresário americano, estando em Roma, quis mostrar ao filho a beleza de um pôr de sol nas colinas de Castelgandolfo. Antes de se postarem num bom ângulo, o filho perguntou ao pai:”pai, onde se paga”? Esta pergunta revela a estrutura da sociedade dominante, assentada sobre a economia e o mercado. Nela para tudo se paga - também um pôr de sol - tudo se vende e tudo se compra. Ela operou, segundo notou ainda em 1944 o economista norte-americano Polanyi, a grande transformação ao conferir valor econômico a tudo. As relações humanas se transformaram em transações comerciais e tudo, tudo mesmo, do sexo à Santísssima Trindade, vira mercadoria e chance de lucro.


Se quisermos qualificá-la, diríamos que esta é uma sociedade produtivista, consumista e materialista. É produtivista porque explora todos os recursos e serviços naturais visando o lucro e não a preservação da natureza. É consumista porque se não houver consumo cada vez maior não há também produção nem lucro. É materialista pois sua centralidade é produzir e consumir coisas materiais e não espirituais como a cooperação e o cuidado. Está mais interessada no crescimento quantitativo – como ganhar mais – do que no desenvolvimento qualitativo – como viver melhor com menos – em harmonia com a natureza, com equidade social e sustentabilidade sócio-ecológica.


Cabe insistir no óbvio: não há dinheiro que pague um pór do sol. Não se compra na bolsa a lua cheia “que sabe de mi largo caminar”. A felicidade, a amizade, a lealdade e o amor não estão à venda nos shoppings. Quem pode viver sem esses intangíveis? Aqui não funciona a lógica do interesse, mas da gratuidade, não a utilidade prática mas o valor intrínseco da natureza, da ridente paisagem, do carinho entre dois enamorados. Nisso reside a felicidade humana.


O insuspeito George Soros, o grande especulador das bolsas mundiais, confessa em seu livro A crise do capitalismo (1999):”uma sociedade baseada em transações solapa os valores sociais; estes expressam um interesse pelos outros; pressupõem que o indivíduo pertence a uma comunidade, seja uma família, uma tribo, uma nação ou a humanidade, cujos interesses têm preferência em relação aos interesses individuais. Mas uma economia de mercado é tudo menos uma comunidade. Todos devem cuidar dos seus próprios interesses...e maximizar seus lucros, com exclusão de qualquer outra consideração”(p. 120 e 87).

Uma sociedade que decide organizar-se sem uma ética mínima, altruísta e respeitosa da natureza, está traçando o caminho de sua própria auto-destruição.
Então, não causa admiração o fato de termos chegado aonde chegamos, ao aquecimento global e à aterradora devastação da natureza, com ameaças de extinção de vastas porções da biosfera e, no termo, até da espécie humana.


Suspeito que ao não quebrarmos o paradigma produtivista/consumista/materialista em direção do cultivo do capital espiritual e da sustentação de toda a vida, com um sentido de mútua pertença entre terra e humanidade, podemos encontrar pela frente a escuridão.
Devemos tentar ser, pelo menos um pouco, como a rosa, cantada pelo místico poeta Angelus Silesius (+1677) : “a rosa é sem porquê: floresce por florescer, não cuida de si mesma nem pede para ser olhada”(aforismo 289). Essa gratuidade é uma das pilastras do novo pardigma salvador.


- Leonardo Boff é Teólogo.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Slavoj Žižek - Roda Viva

Entrevista com o sociólogo e filósofo esloveno Slavoj Žižek, no Roda Viva. Programa apresentado em 02/02/2009 no qual ele fala sobre as novas perspectivas da esquerda e seu livro - segundo ele, sua obra prima - "Visão em Paralaxe".

domingo, 28 de março de 2010

Protágoras de Abdera - de Sexto Empírico

Alguns pensam que Protágoras de Abdera pertence também ao grupo daqueles que aboliram o critério, uma vez que ele afirma que todas as impressões dos sentidos e todas as opiniões são verdadeiras e que a verdade é uma coisa relativa, uma vez que tudo o que aparece a alguém ou é opinado por alguém é imediatamente real para essa pessoa.

Não há dúvida de que no começo do seu livro Raciocínios Demolidores, ele afirmou que "De todas as coisas a medida é o homem, das coisas existentes que existem, e das coisas não existentes que não existem." E mesmo a afirmação contrária parece testemunhar a favor desta ideia. De facto, se alguém quiser afirmar que o homem não é o critério de todas as coisas, estará a confirmar a afirmação de que o homem é o critério de todas as coisas, uma vez que quem faz a afirmação é ele próprio um homem e ao afirmar o que aparece relativamente a si, confessa que a sua própria afirmação é uma das aparências relativamente a si próprio. E por isso também que o louco é um critério fiável das aparências que ocorrem num estado de loucura, aquele que está a dormir das do sono, a criança das da infância e o idoso das da velhice. Não é igualmente correcto rejeitar um conjunto de circunstâncias devido a um conjunto diferente de circunstâncias - quero dizer, as aparências que ocorrem no estado de loucura devido às impressões recebidas num estado mentalmente são, as do sono devido às do estado de vigília e as da infância devido às da velhice. De facto, tal como estas percepções não aparecem aos primeiros, inversamente também as aparências percebidas por estes não afectam aqueles. Como consequência, se o louco, ou aquele que está a dormir, não é um juiz de confiança das aparências que percebe por causa de estar num determinado estado de alma, uma vez que quer o homem são de espírito quer o homem acordado também estão num certo estado de alma, também não serão de confiança para a determinação das suas percepções. Vendo, por conseguinte, que nenhuma impressão é recebida separada das circunstâncias, devemos acreditar em cada homem tendo em conta as impressões recebidas nas suas próprias circunstâncias. E, como alguns supuseram, este homem [Protágoras] rejeita o critério porque percebeu que este pretende ser um teste de realidades absolutas e pretende distinguir entre o verdadeiro e o falso, ao passo que o homem ainda agora mencionado não admite a existência de qualquer coisa absolutamente real ou falsa.

Tradução de Álvaro Nunes

Sexto Empírico, Contra os Lógicos, I. 60-64.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Slavoj Žižek - "Žižek!" Documentário

Slavoj Žižek é um filósofo e sociólogo esloveno. Neste sensacional documentário, entre palestras e entrevistas ele fala de psicanálise, filosofia e política.













quinta-feira, 25 de março de 2010

O LEGADO DE 1989, EM DOIS HEMISFÉRIOS

IN THESE TIMES, 3 DE DEZEMBRO DE 2009
Novembro marcou o aniversário de grandes eventos em 1989: “o mais importante ano da história do mundo desde 1945,” como o historiador britânico Timothy Garton Ash o descreve.

Aquele ano “mudou tudo,” escreve Garton Ash. As reformas de Mikhail Gorbatchev na Rússia e sua “renúncia ao uso da força exaustiva” levaram à queda do Muro de Berlim em 9 de Novembro – e a libertação da Europa Oriental pela tirania russa.

Os elogios são merecidos; os eventos, memoráveis. Mas perspectivas alternativas podem ser reveladoras.

A chanceler alemã, Angela Merkel, propiciou tal perspectiva – involuntariamente – quando nos convocou a “usar este inestimável presente de liberdade para ultrapassar os muros do nosso tempo.”

Uma maneira de seguir seu bom conselho seria desmantelar o muro maciço - que apequena o Muro de Berlim em escala e comprimento - que serpenteia através do território palestino em violação à legislação internacional.

O “muro da anexação”, como deveria ser chamado, é justificado pelo motivo de “segurança” – raciocínio padrão de muitas ações estatais. Se segurança fosse a preocupação, o muro deveria ser construído ao longo da fronteira e tornado intransponível.

O propósito desta monstruosidade, construída com apoio dos EUA e cumplicidade européia, é permitir que Israel tome valiosas terras palestinas e as principais reservas de água da região, além de negar qualquer viabilidade de existência, enquanto nação, da população nativa da antiga Palestina.

Outra perspectiva de 1989 vem de Thomas Carothers, um estudioso que serviu nos programas de “intensificação da democracia” na administração do ex-presidente Ronald Reagan.

Após revisar os antecedentes, Carothers conclui que todos os líderes dos EUA têm sido “esquizofrênicos” – apoiando a democracia somente se ela se adequar a objetivos estratégicos e econômicos dos EUA, como nos seguidores soviéticos mas não em estados-clientes dos EUA.

Esta perspectiva é dramaticamente confirmada pela recente comemoração dos eventos de novembro de 1989. A queda do Muro de Berlim foi corretamente celebrada, mas foi pouco noticiado o que aconteceu uma semana mais tarde; em 16 de novembro, em El Salvador, o assassinato de seis líderes intelectuais latino-americanos, padres jesuítas, assim como seu cozinheiro e sua filha, pela elite, o batalhão armado Atlacatl, recém saídos do renovado treinamento na Escola Especial de Guerra JFK em Fort Bragg, Carolina do Norte.

O batalhão e sua corte já tinham colecionado um histórico sangrento durante a terrível década em El Salvador que começou em 1980 com o assassinato, por essas mesmas mãos, do arcebispo Oscar Romero, conhecido como “a voz dos sem voz.”

Durante a década da “guerra contra o terror” declarada pela administração Reagan, o horror foi semelhante na América Central. O reinado da tortura, assassinato e destruição na região deixou centenas de milhares de pessoas mortas.

O contraste entre a liberação dos países subjugados aos soviéticos e a aniquilação da esperança nos clientes dos EUA é admirável e instrutivo – ainda mais quando ampliamos a perspectiva.


O assassinato dos intelectuais jesuítas acarretou num fim virtual da “teologia da libertação,” o renascimento do cristianismo que tem suas raízes modernas nas iniciativas do Papa João XXIII e o Concílio Vaticano II, que ele abriu em 1962.


Este concílio “conduziu a história da Igreja Católica para uma nova era,” escreveu o teólogo Hans Kung. Bispos latino-americanos adotaram a “opção preferencial pelos pobres.”


Conseqüentemente os bispos renovaram o pacifismo radical dos evangelhos que foram colocados de lado quando o Imperador Constantino determinou o cristianismo como religião do Império Romano – “uma revolução” que em menos de um século converteu “uma religião perseguida” numa “religião perseguidora”, de acordo com Kung.


Após o ressurgimento do Vaticano II, padres, freiras e leigos latino-americanos levaram a mensagem dos evangelhos para os pobres e perseguidos, os reuniram em comunidades, e os encorajaram a tomar seus destinos em suas próprias mãos.


A reação a essa heresia foi uma repressão violenta. Durante o terror e a carnificina, os praticantes da teologia da libertação eram os primeiros alvos.


Entre eles estão os seis mártires da igreja, cuja execução há vinte anos é agora comemorada com um retumbante silêncio, raramente quebrado.


No mês passado em Berlim, os três presidentes mais envolvidos na queda do Muro – Bush I, Gorbatchev e Kohl – discutiram quem merecia os créditos.


“Eu sei, agora, como os céus nos ajudaram,” disse Kohl. Bush I reverenciou o povo da Alemanha Oriental, que “por muito tempo foi privado dos seus direitos, concedidos por Deus.” Gorbachev sugeriu que os EUA precisariam de sua própria Perestróica.


Não há dúvidas sobre a responsabilidade de destruir a tentativa de reerguer a igreja dos evangelhos na América Latina durante os anos 80.


A Escola das Américas (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation) em Fort Benning, Geórgia, que treina oficiais latino-americanos, orgulhosamente anuncia que o Exército Estadunidense ajudou a “derrotar a teologia da libertação” – apoiado, para ter certeza, pelo Vaticano, usando a mão suave da expulsão e supressão.


A campanha sinistra para reverter a heresia posta em movimento, pelo Concílio Vaticano II recebeu uma incomparável expressão literária na parábola do Grande Inquisidor de Dostoievski, "Os Irmãos Karamazov".


Nesta fábula, passada em Sevilha nos “piores tempos da inquisição,” Jesus Cristo aparece de repente nas ruas, “suavemente, sem ser visto, e ainda, por incrível que pareça, todos o reconhecem” e eram “irresistivelmente atraídos por ele.”


O Grande Inquisidor “ordena aos guardas que o peguem e levem-no” para uma prisão. Lá, ele acusa Cristo de vir para “impedir-nos” no grande trabalho de destruir as idéias subversivas de liberdade e comunidade. Não havemos de segui-lo, amaldiçoa o Inquisidor a Jesus, mas também não seguimos Roma ou “a Espada de Caesar.” Procuramos ser os governantes exclusivos da terra, assim podemos ensinar a multidão “fraca e vil” que “ela só se tornará livre se renunciar a sua liberdade e ceder-nos-la.” Aí eles estarão tímidos e assustados e felizes. Então amanhã o Inquisidor diz, “Eu devo queimar-vos.”


Finalmente, no entanto, o Inquisidor se acalma e solta “ela nos porões escuros da cidade.”


Os pupilos da Escola das Américas, comandada pelos EUA, não apresentou tal misericórdia.


*tradução independente do texto original